A ARTE DE DANJURO

Desde outrora apareceram muitos mestres sobre a face da Terra. Todavia, fica evidenciado pelo fato de existirem muitíssimos poucos mestres verdadeiros que consiste tarefa dificílima tornar-se um deles. Penso eu sempre assim. Em certo sentido, a contribuição deles para com a humanidade é incomensurável e, por isso, nós lhes devemos ser gratos. Diria, outrossim, que o mestre é o fruto do esforço do gênio; o resultado do esforço do medíocre é tornar-se alguém hábil. Contudo, por mais alto o estágio a que atingiram os mestres do passado, por não contar com meios de conhecer isso, farei gradualmente minha apreciação daqueles mestres que vi e ouvi até os dias presentes.

Dentre os mestres que ainda hoje não consigo esquecer, há, no teatro, o nono Danjuro. Sua reputação de mestre é por demais conhecida, não havendo, portanto, necessidade de eu fazer comentários a seu respeito. Destarte, porei aqui apenas as impressões daquilo que vi. Não me esqueço. Tinha eu uns vinte anos. Provavelmente a época em que Danjuro se encontrava no apogeu de sua carreira. Posso dizer que eu assistia unicamente as dezoito peças que compunham o repertório da família Ichikawa. Creio que ele depois de velho não se apresentava senão em peças intermediárias. Como mestre, a característica de sua arte era bastante distinta da dos demais atores: ele ficava completamente imóvel ao se apresentar no palco. Sua arte é classificada como sendo a da expressão psicológica. Realmente era assim. Quase não havia movimento; inexistia o que se pudesse chamar propriamente de técnica. No entanto, ele magnetizava inteiramente a plateia: um verdadeiro mestre. Dizem que nenhum outro ator era capaz de criar no palco tensão como a que ele criava. Também isso é verdade. Vou descrever aqui as impressões que tive de umas duas ou três apresentações suas.

Ele adorava fazer papéis de heróis e grandes personagens, talvez numa manifestação de sua personalidade. Dentre as interpretações que assisti, eis as mais inesquecíveis: o Benkei, da peça Lista de Donativos, o Saemon-nojo Sakai, da peça O Tambor de Sakai; Kiichi Hogen, em Cantero de Crisântemos; a bruxa, em Coleta de Folhas de Outono; Kato do Terremoto; Tametomo; o Ministro de Mito; Kuemon Kezori e outros. Vai aqui a marcante passagem em que ele interpretou Saemon-nojo Sakai. O próprio Saemon-nojo toca o tambor de guerra em pleno perigo, quando hordas de guerreiros inimigos se acercam impetuosamente do castelo. O tambor rufa sem qualquer alteração em seu ritmo; as portas descerradas da fortaleza mostram, sob a luz intensa das tochas, que tudo se encontra como sempre. O comandante das forças inimigas, temendo que alguma cilada astuciosa esteja sendo engendrada, ordena por fim a retirada. Trata-se da cena em que Saemon-nojo — tendo em mente um estratagema ousado — aguarda impassível o momento. Espera apenas o correr das horas emudecido, sem mexer sequer uma das sobrancelhas, ao ouvir os repetidos anúncios que seus súditos, ignorantes do fato, lhe fazem sobre o perigo iminente. Assim, ele está sentado sozinho no meio do palco, de olhos cerrados, com a cabeça levemente voltada para baixo, sem fazer o menor movimento. Por isso, quando no fim cessam os comunicados dos seus comandados, sozinho, ele permanece no mais completo silêncio, durante o espaço de quatro a cinco minutos, dando mesmo a impressão de não ser alguém vivo. A plateia assiste em suspense aquele personagem mudo e imóvel. Acabou por ficar magnetizada, a imaginar qual será a atitude a ser tomada por Saemon-nojo a seguir. Nesse momento eu senti a fundo. O fato de um ator de teatro fascinar de tal forma a plateia, apenas estando sentado no centro daquele imenso palco de kabuki, sem mover um único músculo da face nem emitir um único som, é simplesmente o suprassumo da arte. Admirei-me profundamente, considerando que aquele, sim, era um mestre de verdade.

Recordo-me, ainda, quando ele interpretou Kiichi Hogen, na peça Canteiro de Crisântemos. Este, conquanto desfrutasse de regalias como tático das forças da família Taira, anelava secretamente pela restauração da família Minamoto. Casualmente, Ushiwakamaru, com o intuito de apoderar-se dos tratados de estratégia e arquitetar o restabelecimento dos Minamoto, passa a morar, sob o nome falso de Torazo, juntamente com seu servo Chienai, na casa de Kiichi, como empregado deste. Entrementes, a filha de Kiichi Hogen, Minazuru Hime, apaixona-se pelo falso Torazo, fato que, naturalmente, provoca contentamento íntimo ao pai. Este, por intermédio da filha, torna possível a Torazo roubar os tratados secretos de estratégia guardados nos cofres da família. Interiormente satisfeito, mas sem poder deixar tal transparecer, por estar servindo aos Taira, Hogen finge não ver o amor que Minazuru Hime dedica a Torazo: eis a interpretação psicológica com que deve ser tratado o personagem. A perícia de sua arte nesse momento é impossível de ser descrita.

Há, outrossim, a cena em que o Ministro de Mito executa Mondaiyu Fujii, a pedido do próprio. Depois de abater Mondaiyu de um único golpe, ele guarda a espada na bainha, tendo-a limpado do sangue. Logo, sem nem se dignar a olhar para o cadáver, retira-se do palco altaneira e calmamente, cantarolando em voz sonora a canção da peça A Dança do Deus Dragão, através de um longo corredor guarnecido de balaustrada. Tamanha era a tensão presente em seu ritmo que este chegava quase à estaticidade, combinando maravilhosamente com o movimento do palco rotatório. Ainda hoje não me esqueço da emoção que experimentei. Na representação de Tametomo, para salvar o filho do perigo que se aproxima, ele ata a criança à uma pipa enorme, da qual corta o fio após tê-la alçado às alturas. A altiva serenidade de sua fisionomia, ao contemplar o céu distante, era fisionomia impassível. Uma perfeita expressão psicológica: mágico impacto de Danjuro e a sua arte de representação que cativava completamente o espectador jamais  poderão ser descritas pela palavra oral ou escrita. Segundo o que ouvi na época, quando a plateia o aplaudia ou ovacionava durante a performance, ele a modificava no dia seguinte. Pelo que eu imagino, ele visava com a sua representação dramática não a grande público, mas a um só conhecedor. Após a morte de Danjuro, acabei por perder meu interesse pelo teatro kabuki. Aos meus olhos, uma vez apreciadores da arte de Danjuro, os demais atores refletiam-se por demais inferiores.

Por isso, a solidão advinda da perda do gosto pelo kabuki perdura até os dias de hoje. Contudo, se tivesse que apontar um mestre do kabuki pós-Danjuro, citaria Ganjiro Nakamura. Dentre suas representações, nunca conseguirei esquecer duas: Jihe, o Vendedor de Papel e A Paixão de Tojuro. Para ser sincero, digo que a minha perda de interesse pelo kabuki talvez derive-se basicamente da ausência do fator psicológico. Falando sucintamente, só se procura representar com a forma, com a pretensão de adular o espectador. Isso abaixa o nível da arte teatral. Pode-se afirmar que quase todos os artistas modernos dramatizam exageradamente, se movimentam exageradamente. Danjuro, contudo, passava por cima da forma, procurando sempre representar por meio do sentimento. Tal elevava o nível da arte dramática ao seu grau máximo. Analisando a questão de outro vértice, ao representar uma personalidade histórica de destaque, ele transformava-se nesse próprio indivíduo. Especialmente quando se considera que o japonês de outrora tinha por ideal o não demonstrar das emoções, deve-se almejar a inexpressividade. Assim, a personagem que ele interpretava não parecia ser a fantasia de um ator. Ele fazia acreditar na reaparição daqueles heróis em suas respectivas eras. Só anseio incessantemente que, durante a minha vida, apareça mais um mestre do mesmo quilate dele.

A propósito, passarei a escrever a respeito de uma atriz que incluiria no rol dos mestres. Trata-se da famosa Sumako Matsui. Eu arregalei os meus olhos de admiração diante de sua excepcional arte de representar, quando ela, ainda jovenzinha, fez sua estreia e começou a adquirir nome, no papel de Nora, na peça Casa de Bonecas, de Ibsen. A partir de então, jamais deixei escapar uma representação sua sem assistir. As últimas peças em que a vi atuar foram A Mulher do Açougueiro, de Kichizo Nakamura, e Carmen. Pareceu-me uma estranha coincidência que, em ambos os dramas, a trama constasse da perpetração do assassinato da personagem por ela representada: no primeiro, por causa dos ciúmes do marido e, no último, por José. Dois dias depois, ela se suicidava. Acho que a "coincidência" estava a prenunciar alguma coisa. Todavia, admirei-me de sua atitude como artista, pois, dois dias antes da morte, ela subiu ao palco sem demonstrar o mínimo abalo que fosse.

Pretendia discorrer a respeito de outros mestres que não atores, mas, para evitar a prolixidade, fico por aqui.

Ensaios - 30 de agosto de 1949

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